A eterna luta de classes, estereotipada pela cor do colarinho. Qual é a cor do teu colarinho?

Sexta-feira, 1 de Julho de 2011
Dica para os Magistrados em Dificuldades

 

Encontrei há algum tempo uma página online que tinha em destaque um produto inovador: auriculares para exames. 

 

Sim, leu bem. Este pequeno objeto que surge na imagem com semblante de granada ou isqueiro, é na verdade um minúsculo auricular ampliado, para colocar dentro do ouvido. Estes auriculares servem para ultrapassar as terríveis dores de cabeça que os estudos mais fugazes provocam, que são tão necessários para poder obter a nota pretendida. Mas agora já não é preciso atormentar a mente com estudos morosos e árduos ou com noites em branco a preparar até à exaustão aquelas micro-cábulas e que ainda requerem ser colocadas dentro da esferográfica BIC ou noutra toca apropriada.

 

Para melhor exemplificar as capacidades desta maravilha da tecnologia ao serviço daqueles com menor espírito de sacrifício, passo a transcrever na íntegra o texto original que acompanha o artigo publicitário.

 

Corpo da notícia: "O Auricular Exames é o primeiro equipamento que garante 100% eficácia. Para que não aproveitar e passar ás disciplinas mais complicadas?"   

 

Artigo completo: "Auricular Exames é o equipamento mais eficaz para passar a todos os exames, sejam eles quais forem. Este auricular permite fazer chamadas dentro de um exame ou ouvir de um MP3 a matéria. O Auricular Exames é composto por um auricular sem fios, um colar de cobre e um equipamento bluetooth. O sistema funciona da seguinte maneira: o utilizador coloca o auricular exames no ouvido com a pilha fornecida já instalada, coloca o colar à volta do pescoço (será este que irá enviar o audio para o auricular sem fios), de seguida conecta o bluetooth ao teu telemovel ou se preferires liga directamente ao teu Mp3. O sistema bluetooth pode ser colocado na manga, no caso de pretenderes fazer uma chamada durante o teste, pois tem um potente microfone para captar o que pretendes perguntar mesmo em voz baixa (muito baixa até).

  

Posto isto, vamos imaginar que tens um exame de faculdade de Matemática e que no teu curso, matemática não serve para nada e vais ter de passar, pois faz parte das disciplinas do curso. As cábulas só te ajudam para colocares o formulário e por isso chumbas novamente à disciplina… Com o Auricular Exames podes facilmente pedir a um colega que perceba da matéria, para estar ao telefone contigo durante o exame que pretendes passar. Com o microfone na manga e o auricular posto, começas a ditar as perguntas como se estivesses a ler para ti em voz baixa, dás um tempo para o teu colega resolver o exercício e depois só tens de ficar a ouvir e a escrever toda a resolução do exercício. 

 

O Auricular Exames é totalmente invisível, mesmo que alguem esteja ao teu lado é impossível, repito impossível, de o conseguir ver. 

Qual o preço do equipamento? O preço deste equipamento perfeito é de apenas €189. É um preço ridiculamente baixo comparado com os resultados que te vão dar, se não vejamos:

Em cada semestre de faculdade tens em média, 6 cadeiras/disciplinas, o que quer dizer que tens 12 cadeiras por ano, e 36 cadeiras em 3 anos para fazer. Em cada cadeira/disciplina tens no mínimo 2 testes para não ires a exame, ou seja, nos 3 anos de faculdade tens no minimo de fazer 72 testes. Se usares o auricular em todos os testes, vais passar a todos…. O que dá 189/72= ~2,6€. Estas a pagar apenas 2 euros e meio por cada teste para passares, não é um preço tão baixo?

 

Vamos a outro exemplo: Com 36 cadeiras para passar ao longo dos 3 anos, se chumbares a uma a cada semestre, são 6 disciplinas que vais ter de ir a exame, numa faculdade publica, cada exame ronda os 15€, numa privada o custo ronda os 60€. Na publica, 6*15=90€, na privada nem é preciso fazer contas. Isto claro, se passares ao exame…Se tiveres 3 disciplinas por semestre que não consegues passar, dá 36 no fim dos 3 anos, o que dá 15€*36=540€ que irás gastar. Queres fazer as contas se tivesses comprado no secundário? Bom acho que percebes-te a ideia! Não compensa muito mais passar tudo à primeira e gastar apenas 99€??


Aproveita! Está agora com DESCONTO!

Para quê estar a gastar esse dinheiro, se podes usar o auricular exames e passar à primeira?" 

 

Após ler este anúncio tão bajulador das qualidades do produto em causa, eu próprio fiquei com uma crescente vontade em adquiri-lo, apesar de momento nem sequer andar a estudar e de não precisar dele para nada.  

Apreciei particularmente o parágrafo em que são esmiuçados num riquíssimo detalhe todos aqueles cálculos, muito necessários para convencer aqueles de menor espírito de sacrifíco a comprar o "equipamento perfeito" que sem qualquer dúvida se encontra a "um preço ridiculamente baixo" de "apenas €189"!!! Mais barato não há. 

 

É ilegal ou desonesto usar um aparelho destes??? Desonesto pode até ser mas ilegal certamente que não... bem, se for, trata-se de um mero detalhe burocrático, facilmente resolvido com uma pequena alteração ao Código Penal para aditar uma lacunazita. Algo singelo, claro. 

 

Afinal estes fabulosos auriculares para exames (mágicos, diria eu), são um utensílio preciosíssimo para todos os futuros doutores e insígnes mestres deste nosso país, e que podem perfeitamente evitar constrangimentos como os que assolaram aquela turma de novos magistrados que foi notícia recentemente. É só uma dica de amigo. 

 

Claro está que após terem o diploma na mão, a empresa não se responsabiliza por qualquer eventual (inevitável, diria eu) vácuo na formação adquirida pelos seus clientes. Julgo que é compreensível e até aceitável que o objetivo é somente aldrabar o sistema de valores académicos e não assegurar a correta preparação da pessoa aquando da prova de fogo realizada por uma empresa para contratar um novo colaborador. 

 

Por ora, o desemprego é a saída profissional mais provável para estes diplomados alternativos, mas não deseperem ó doutores, que sem dúvida que com tal abundância criativa do povo lusitano, já se encontra em marcha um qualquer utensílio para aldrabar também as empresas aquando os testes para entrada nessas. 

 

Apelidam ao empreendedorismo e à iniciativa destes alunos alternativos de geração rasca, mas o que as pessoas não entendem é que geração rasca são aqueles marrões que de tanto estudar o cérebro alargou e agora até têm de comprar bonés, chapéus e gorros novos porque a cabeça já lá não cabe. A gastarem dinheiro desnecessariamente. Bem feita. É para aprenderem a não estudar. Acham grande coisa o fato de agora terem bons empregos, vida estável, reconhecimento laboral, ou sólidos conhecimentos técnicos. Não liguem ó incompreendidos alternativos, pois o utensílio messias irá um dia surgir no mercado negro, numa loja perto de vós. Pois é.

 

Para concluir, deixo aqui a minha humilde sugestão ao novo elenco governativo para a introdução no pack Magalhães de um exemplar destes auriculares para exames, pois as crianças devem começar a lidar com as novas tecnologias o quanto antes. O contato com tais maravilhas tecnológicas é essencial para a formação de uma nova geração que possa andar à rasca sem tanto custo como as predecessoras. Tenho dito. 

 

 

 

 

Nota de rodapé para os leitores alternativos: o texto supracitado contém uma exacerbada (significa, exagerada) dose de ironia e sarcasmo, a que se junta uma vã tentativa de pontual boa disposição relativa à temática abordada. 



Traficado por Dinis Vieira às 21:03
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Quinta-feira, 30 de Junho de 2011
Tráfico Laboral do Capitalismo

 

Concordo que haja mobilidade no setor do estado. Quem o tem como patrão, tem que se sujeitar a pontuais mudanças que sejam necessárias. 

Não concordo é com abusos laborais que em alguns casos são praticados. 

 

"O Meu Testemunho"

O estado é a minha entidade patronal.

Levei alguns anos para chegar perto da localidade onde resido.

Progredi na carreira no meu serviço, que por motivos profissionais não irei referir diretamente, e tendo sido promovido, fui remetido uma vez mais para longe, coisa de pouca monta a rondar os 480 km de distância! Durante os quatro anos seguintes, foi-me imposta a deslocação para seis locais distintos, todos em zonas do país distantes entre si, e distantes da minha residência. Conheço Portugal como poucas pessoas, pois não passei simplesmente de passeio pelos locais, mas sim residi em cada um deles por largos periodos.  

 

Na altura que era suposto ser deslocado para uma distância razoável (até cerca de 120 km) da minha localidade, a minha entidade patronal remete-me para um local que dista uns meros 385 km!!! Sou informado de que terei que ficar por lá durante mais um ano. Quatro dias após o meu advento à nova casa, sou informado que afinal é possível que por lá tenha de ficar dois anos!!!

Nos derradeiros quatro anos a minha esposa ficou sozinha em casa, a cuidar sozinha de duas crianças. O apoio da cônjuge para a progressão na carreira e consequentemente na qualidade de vida foi total de início, mas ninguém era capaz de prever estas condições de tráfico laboral que se iriam seguir. Aos quatro anos juntam-se, para já, os próximos dois. Seis anos de uma mulher de coragem a viver como mãe solteira, a lutar sozinha pelo seu emprego e pelo bem estar dos seus rebentos. Seis anos em que a filha mais velha ganhou consciência para perguntar o porquê do pai se encontrar sistematicamente ausente durante largos periodos. Suficiente para desestabilizar uma infância normal. 

 

 

Valeu o esforço monetariamente? Não. Desde que saí de casa fui promovido duas vezes, algo que nem todos alcançam. O mérito da façanha e do enorme sacrifício familiar foi quantificado em aproximadamente €250 a mais no ordenado estatal. Por entremeio destes anos, dispendi aproximadamente por mês €300 em deslocações para "visitar" de longe a longe a minha família, por meros dois a quatro dias (era só acumular semana a semana a única folga semanal a que tenho direito, apesar de estar todo o dia no local de serviço, típico de quem vive sem ter mais nada presente). Os gastos extraordinários não se limitam às viagens, pois sustentar uma vida fora de portas tem custos acrescidos, tais como a alimentação por exemplo. Gasto mais devido ao afastamento do que o valor em que fui aumentado!!! Se tudo isto ao menos fosse compensado economicamente, com uma real melhoria no rendimento... Tenho prejuízo em relação a se nunca tivesse mexido uma palha. 

 

 

Portugal meu país, explica-me o que tenho eu andado a fazer? Explica-me como vou eu explicar à minha esposa e às minhas filhas que apesar de tudo ainda tenho que ficar ausente por pelo menos mais dois anos.

Se perguntas porque não levo a família comigo, eu pergunto quem me paga o crédito contraído ao banco para adquirir um tecto, quem empregará nestes tempos de crise a minha esposa caso ela se demita do seu emprego para me acompanhar, quem garante que seis mudanças de residência em quatro anos não afectará as minhas filhas?  

É assim que valorizas o empenho e a dedicação do teu povo? 

 

Após tanto tempo e sacrifício, estou no limiar da minha compreensão. Após tornar-me num elemento de reconhecido valor laboral, de adquirir competências específicas para a minha área, e poder exercer como poucos uma atividade necessária a todos os cidadãos, considero seriamente demitir-me. Entendo perfeitamente a posição precária deste país, entendo o elevado índice de desemprego, mas atingi o limite. Somos seres de carne e osso apesar de sermos tratados como meros números. Precisam de nós mas tudo fazem para nos escorraçar. Onde está a dignidade mínima que se exige? 

 

O mundo precário assusta qualquer pessoa, pois todos precisamos de trabalhar para poder viver condignamente.

Mas acredito que há mais na vida do que esta nova escravidão, este maldito tráfico laboral do capitalismo. 

 



Traficado por Dinis Vieira às 21:57
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